A percepção do universo captada pela ordinária visão de um jornalista terráqueo

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Lenda Mapuche (IV de IV)

(Índio falando)

“Machi é aquele que recebe das divindades a missão e o poder de curar pessoas tanto no plano material quanto no psíquico e espiritual. Agora você se encontra em meu Kuimü, momento em que contato forças sobrenaturais projetando em tudo a minha volta, inclusive em você, um estado de transe”.

“Estou fazendo um pequeno Machitun, ritual de cura para te livrar desta enfermidade. O Machitun é composto de três partes: diagnóstico, expulsão e revelação sobrenatural da verdadeira causa de sua doença”.

“Esta madeira (aponta) é de uma árvore chamada Rewe. Seu tronco é cósmico e une o mundo natural ao sobrenatural. Ela pode alcançar 40 metros de altura nos bosques úmidos e produz uma flor de cor branca chamada Ngulngu ülngu ulngo. Sua casca é grossa e contém uma delgada resina”.

“No Rewe misturo três espécies de plantas: Borraja, para purificar seu sistema respiratório; Tusilago, para limpar sua garganta; e Parqui o Palqui, para agir como sudorífero e anular seu resfriado e febre”.

(Pausa)

O Machi parou de falar e colocou de lado a espátula com que espremia aquelas substâncias. Com movimentos suaves me estendeu o Rewe e disse:

- Lave sua cara. Limpe seu nariz. E coma. (Kullumtunge. Liftuaymi tami yu. In.)

Eu estava tão envolvido e intrigado com suas palavras que não conseguia esboçar reação. Meio lesado e bem devagar olhei para a pasta que ele me estendia. Era algo muito parecido com o gorfo de um cachorro que tive que comia plantas no jardim da minha mãe. Ainda lento e pasmo, estendi a mão peguei o Rewe.

Coloquei-o no colo, apanhei um punhado da pasta com a mão e analisei. Tinha cheiro de folha e cara de gorfo de folha, nada apetecível. Numa ação repentina, botei um punhado na boca e mastiguei evitando caretas. O gosto não era tão ruim, afinal tinha sabor de folha. A consistência que não era das melhores, mas mesmo assim engoli. De certa forma tinha gostado daquilo e me empolguei. Comecei a passar no rosto, nariz e pescoço ao mesmo tempo em que comia. Comi um monte até escutar:

- Eluen (Dê-me)

Entreguei o rewe e supus que já tinha usado o suficiente. Trinta segundos depois comecei a sentir uma moleza muito forte por todo o corpo. Enquanto eu bocejava e espreguiçava com a cara toda melecada, o Machi cantarolava um mantra surreal batucando em um Kultrung (Instrumento de percussão mapuche feito com madeira nativa e coro de ovelha. Em seu interior há moedas de prata e pequenas pedras coloridas, de significado mágico e afetivo para o Machi).

- Feley, Feley / Feley, Feley / Chem dungu müley, peñi? / Chew ngemeymi? ó Chew Amuymi / Tunten fali? / Chumül Wiñoaymi? / Feley, Feley / Feley, Feley / Che kulliñ nieymi tami ruka mew?

- Assim és, assim viverás / Que novidades traz, irmão? / Para onde foi? / Para onde vai?/ Quando voltará? / Assim és, assim viverás / Como são os animais de onde você vem?

Aquela canção me envolvia completamente e a moleza que sentia no corpo dava lugar a uma sensação de prazer incomensurável. Eu não conseguia parar de sorrir e passar a mão sobre mim mesmo, embevecido numa onda de percepção de sentidos.

Minha visão já não se encontrava mais no interior daquela rústica cabana e nem tão pouco o índio eu avistava. Enxergava uma profusão ininterrupta de formas e cores, que começava num fundo branco e como uma raiz trepadeira subia, dava voltas, criava cores, seguia caminhos distintos, formava caleidoscópios, cintilava, faiscava e tremeluzia.

A audição estava extremamente aguçada. Podia ouvir passos de formigas ecoando em suas ligeirinhas passadas na terra batida. Conseguia escutar o escorregar de um pingo de orvalho no alto de uma árvore até o seu choque contra o chão, fragmentando-se em dezenas de gotículas.

No tempo em que tudo isso acontecia, o Machi continuava o mantra. Até que ele parou de cantar e retomou a fala. Eu continuava sem vê-lo, mas podia ouvi-lo com tanta nitidez que tinha a capacidade de enxergar suas palavras, que entravam em harmonia com aquele baile de formas e cores em minha visão.

- Eu te conheço há muito tempo, você que agora se autodenomina Luís. Conheci-te com o nome de Awkin Kürüf (Eco do Vento) em uma de nossas vidas, em que crescemos e aprendemos muitas coisas juntos.

- Hoje você está aí, encarnado e recebendo um novo aprendizado. Vejo que você não está se saindo mal, mas tenha cuidado. O Planeta Terra ainda é limitado e muito mais perigoso do que naquela época.
- Concentre-se em seu objetivo e lembre-se de seu verdadeiro propósito cósmico. Você é como o vento. Enquanto a mim foi dada a missão de curar, a você foi atribuída a incumbência de comunicar, embora não sejamos senhores do tempo nem da razão

- Missões não tornam ninguém mais especial do que ninguém, afinal cada ser deste universo existe por razões fundamentais, até mesmo os que se perdem.

- Evite suas tentações e ponha em prática suas ideologias. Seu coração é bom, por mais que você mesmo ainda não tenha tanta certeza disso. E lembre-se: o que mantém a alma viva e em constante jornada pelo cosmo é o desejo e a força de fazer o bem. Atitudes nefastas maculam o espírito até o seu desvanecimento.

- Como prometido naquela época, continuo olhando por ti. E quando os papéis novamente se inverterem, não esqueça de velar por mim, peñi.

Lágrimas incrédulas escorreram pelo meu rosto. Aquelas palavras me levaram até a Lua, onde pude contemplar a Terra. Levaram-me até o âmago de meu corpo, na parte mais íntima de meu ego, onde pude julgar meus atos. E, por fim, levaram-me até o nada, o vazio, onde pude enxergar a importância da vida.

E no nada eu permaneci por um bom tempo... Até que...

(Voz da Hermínia)

- Tom, Tom (insiste), você está bem?

(Barulho de motor e estrada)

Meio desorientado, olho para ela e pergunto:

- Onde estamos?

“Estamos chegando”, responde.

- Chegando onde?

“Em Pucon, oras. Para onde acha que estamos indo?”

Olhei a minha volta e tive um grande Déjà Vu. Estávamos realmente no ônibus que havia nos levado até Pucón um dia antes, na mesma estrada e na mesma hora. Logo pensei: “tudo não passou de um grande sonho. Mas como pode? Que sonho fantástico”.

Estava ainda confuso e abobado quando Hermínia perguntou:

- Como você está? E a garganta?

A gripe tinha sumido e a garganta estava indene.







5 comentários:

karina disse...

Adorei!!! mt bem escrito Osama, a ultima foto da mí com as brejas ate parece um comercial...

Square Beast disse...

Irado!!! Não consegui ler na sexta, e fiquei o final de semana na nóia pra saber o final da saga...great finish!
ps: e essa foto de evacuação em caso de emergencia, tenso!!!

Guilherme disse...

Muito loko seu conto jow!!!
Dá um belo roteiro pra sua pós!!! hehehhe!
final insano!!!
É nóis mano!!!
Abração!!!

ps: Tô ralando nesse lado do mundo viu mano!!!

Mari disse...

adoreeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeei!!!!

Escreve mais!!!

Anônimo disse...

Muito bom. Osama!!!
Se contar que eu fiquei na Sexta 13 dando atualizar o dia inteiro e vc não postou a parte final... rsrsrs mas beleza.... valeu esperar!!!
Escreve por música!

Sou fã dos seus textos manow!!!

Abraços!